domingo, 2 de outubro de 2016

O FESTIVAL

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Fotografia de AC
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Na zona havia várias figuras diferentes, características, daquelas que são postal de qualquer lugar, sujeitas ao humor dos demais. Mas o Severino era caso único.
Antigo estudante em Coimbra, por onde deambulara vários anos, acabou por regressar à terra sem curso. Diziam uns, em voz baixa, que foram amores mal correspondidos. Outros, os mais antigos, rematavam a questão com deram-lhe por lá alguma coisa a beber, enquanto encolhiam os ombros em sinal de resignação. Fosse como fosse, a família colocara uma pedra sobre o assunto. E o drama do Severino, falado apenas à socapa, acabara por se desvanecer.
Os anos passaram. O Severino, herdeiro de terras e gados, foi gerindo as coisas ao seu ritmo. Falava com todos, sorria mesmo, mas apenas o indispensável. Não era bicho do mato, mas cultivava uma prudente distância, como que dizendo aos outros que cada um sabia da sua vida.
O Severino, sabedor privilegiado, através de antigos colegas, dos humores da política de subsídios dos burocratas europeus, tudo aproveitou, fosse abate ou implemento da vinha, do olival ou do que quer que fosse.
A vida não lhe corria mal. O dinheiro, embora pouco abundante, não faltava, dava emprego sazonal, percorria os campos como quem respirava. Mas sempre no mesmo registo: falava o indispensável, sem nunca se privar de sorrir.
As pessoas, a pouco e pouco, foram-se habituando àquela forma de estar. Continuavam a murmurar, estava-lhes no sangue, mas o tom era diferente.  A desconfiança, perante quem se detinha mais com as plantas do que com os homens, tornou-se respeito, do despeito adveio admiração. O Severino, contudo, pouco ou nada ligava.
Um dia a aldeia olhou-se, interrogada, para as máquinas que passavam em direcção a um dos campos do Severino. Da boca dele, nada. As opiniões dividiram-se, com algum calor à mistura, e mais se acentuaram quando, passado algum tempo, viram que, da paisagem dum velho olival, de troncos já bastante carcomidos, se vislumbrava agora um terreno liso, com três pequenos edifícios estrategicamente construídos, ladeados com uma ou outra árvore, de maior porte, poupadas, possivelmente, para sombra.
O falatório aumentou, os rumores eram mais que muitos, mas do Severino não se ouvia nada. Alguns, com maior proximidade, ainda ousaram perguntar-lhe o que era aquilo, mas ele apenas sorria. E só quando, uns meses depois, foram convocados para uma reunião no salão da Junta de Freguesia, é que ficaram a saber o que o Severino andara a tecer aquele tempo todo: a realização de um festival de música rock, com carácter anual, que traria à terra milhares de visitantes. 
Ainda mal a missa começara e já as bocas se abriam de espanto. O Severino, tal como os desconhecidos que o rodeavam na mesa, se queriam levar a deles avante, tinham muito que explicar. Mas ele, fiel ao seu registo, continuava a sorrir.
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32 comentários:

  1. À medida que avançava na leitura, mais me lembrava dos "Contos da Montanha" e de Miguel Torga.
    Tens um talento especial para criar figuras com uma personalidade e características fora do comum, mas muito interessantes e positivas.
    Gostei do Severino. Um sorriso pode esconder muitos mistérios, mas não deixa de ser um sorriso, e um sorriso é sempre cativante!
    Excelente, como sempre!

    Beijinhos, A.C.

    PS- Às tantas, o Severino mora lá para Paredes de Coura...:)

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  2. Um conto que captou toda a minha atenção.
    O Severino, um homem com grande personalidade, que sabe o que quer e como fazê-lo… sua maneira, independentemente, se os seus vizinhos gostam ou não gostam.
    : )

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  3. Resistência às mudanças... Existem em toda parte, assim como o falatório popular.
    Excelente texto, li com muito interesse. Tenha uma ótima semana!

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  4. Costuma dizer-se: quem muito fala pouco acerta. Gosto de gente que faz, em vez de passar o tempo a dizer que vai fazer.
    Mais um texto (quase crónica) em que ao teu excelente modo narrativo, lhe subjaz uma mensagem de enorme dimensão humana. É muito bom podermos contar com figuras como o Severino.
    Bjo, AC :)

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  5. AC, os seus textos são daqueles que uma pessoa lê atentamente cada linha, cada parágrafo, entretanto está desejando de chegar ao fim só para saber qual o desfecho. Ou seja, prende. Nem toda a gente que sabe escrever consegue esse feito, isso de não levar o leitor a desistir a meio.
    ...
    Acho que o Severino é dos tais que a sabe toda, é manhoso.

    Esta parte do seu texto fez-me sorrir: "deram-lhe por lá alguma coisa a beber", lembrei-me logo da história das pessoas de muita idade que caem nalguma burla e não querendo assumir algo, dizem: "deram-me alguma coisa a beber..." :))

    Tenha uma boa semana. Beijinho, AC.

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  6. Agora, só queria o desfecho - Que nome tem o Festival anual?

    :))

    Boa noite AC

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  7. AC:
    Uma narrativa como sempre cativante, como cativante, à sua maneira, é o Severino.
    Um festival é sempre um festival não é verdade ? :)

    Um beijinho

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  8. Uma forma de estar muito especial a do Severino que mesmo com rumores não deixou de ser respeitado.

    Beijinho meu amigo.

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  9. Quando o festival se realizar e o pessoal faturar com toda aquela gente, o falatório vai acabar e o Severino vai ser um herói. Ainda assim só para alguns, que há sempre quem seja contra tudo :)

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  10. Bem, parece-me que era um gajo sensato!

    :)

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  11. Um festival? E deitou abaixo as oliveiras? Fiquei decepcionada com o Severino...
    Um conto muito bem escrito.
    Uma boa semana.
    Beijos.

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  12. Todos deveriam ser um pouco Severino... viver sua vida sem precisar da aprovaçao dos outros...

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  13. Adoro este retrato fiel do nosso povo. O Severino descobriu que não ia muito longe com a agricultura, pagando a jornaleiros pior um pouco, resolveu ultrapassar esse problema e soube modernizar-se. Beijinhos

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  14. Curiosa esta figura do Severino, homem de poucas falas, um leve sorriso aqui ou ali, cuidadoso na manutenção das "distâncias para os demais, mas pelos vistos um "estranho" empreendedor !
    ... Daqueles que vê mais longe que os demais !
    Gostei de o conhecer ! rsrs... Um tipo "interessante" se eu conseguisse quebrar as barreiras ! :))

    Abraço

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  15. Caro AC,

    Cativante esta tua narrativa com a personagem
    Severino, que eu o vejo como um agente de mudança,
    a mudança da melhor forma, aquela registrada pelo
    sorriso, ação e música. Enquanto o geral fica no
    falatório, o comum adora uma imitação e repetição.
    O original (na personagem) Severino fica no
    enigmático dos gestos.

    Agora devolvendo te "imitando"; "sempre tão bem", AC!
    Aprecio muito a leitura aqui e tu sabes disso.
    Beijo.

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  16. Para inovar temos que pensar se tal atitude não vai " matar" algo a conservar . Se conciliar é possível , devemos tentar .

    Não consentir que nos manipulem , correcto . Mas há seres que merecem atenção e respeito . As arvores. O derrubar as oliveiras ... mesmo sorrindo o Severino se pensasse um pouco , talvez fizesse a modernização de outra forma . ..

    Beijo , AC ,
    Maria

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    Respostas
    1. Maria,
      Do Severino, embora os seus traços fossem caracterizados, com uma certa intenção, com uma aura de mistério, é fácil depreender que sabia muito bem o que fazia. Ele gostava de plantas, e isso é referido no texto, tal como o estado do estado do olival: "...da paisagem dum velho olival, de troncos já bastante carcomidos...", muito provavelmente plantado no tempo dos avós ou dos pais. Possivelmente o Severino cortou os velhos troncos para aquecer a casa na estação invernia, e não é difícil adivinhar que, no convívio com um ou outro amigo, ao calor da lareira, fosse evocada a memória dos seus progenitores.
      A vida é o que é, cada ser tem o seu ciclo de vida, e quem vive no campo convive com isso duma forma natural. Percebo, e de que maneira, a intenção das suas palavras, mas não são seres como o Severino, muito longe disso, que delapidam, e continuam a delapidar, o planeta.
      Será que me fiz entender?
      Obrigado pelo comentário e...

      Um beijinho :)

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  17. Severino cativa naturalmente, sem exageros, um verdadeiro artista da arte de viver. Gostei muito. Bjs

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  18. Para o que havia de lhe dar?! Arrancou as oliveiras para semear um festival de alegria.Estava-lhe estancado no sangue esse grito de liberdade.
    Abraço

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  19. Boa, Severino, well done :)
    Beijinhos e parabéns pelo conto que me prendeu! Já estava à espera de um desfecho capitalista, confesso ;)

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  20. OI AC!
    ABRIR-SE PARA O NOVO. NA CERTA TODOS GOSTARAM.
    ABRÇS
    http://zilanicelia.blogspot.com.br/

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  21. Ah grande Severino...
    intrigante e delicioso texto que se lê de um fôlego.
    beijinhos
    :)

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  22. Gostei do comentário da Graça Pires...às tantas ao ler o seu texto, achei que o Severino ia construir casa própria, mas não...surpreendeu-nos e pensou no bem comum. É teoricamente falando uma personagem modelada, este Severino! E a surpresa das personagens é uma mais-valia que prende o leitor.
    Parabéns pelo texto!
    beijinho

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  23. Que belo final de conto para o Severino, criando o impensado.
    Pensava que o Severino se perderia na administração das terras.
    Bom conto que prende atenção e cria curiosidade.
    Um terno abraço.

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  24. Os políticos e os ambientalistas deveriam dar mais ouvidos aos "Severinos sorridentes" deste mundo que por vezes sem saberem ler ou escrever sabem mais da natureza do que eles.

    Gostei imenso!

    Beijos e toma lá um sorriso meu! Obrigado

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  25. AC ,
    claro que se fez compreender . E aceito o que me diz .

    Ainda assim ,gostaria de conversar com o Severino , apesar de ele ser de poucas palavras e eu também .Somos , ambos ,mais de sorrisos , acredito que mesmo pequena , teríamos uma conversa .

    Um beijo , AC , e bom fim de semana ,
    Maria

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  26. Um Rock in Rio... na devida escala... porque não, se tal impedir a desertificação da terra, como tantas outras?...
    O Severino... é que tem visão...
    Um texto que nos prende a atenção do princípio ao fim, de uma forma incrível!...
    Beijinho
    Ana

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  27. Hahaha, esse Severino mora em Paredes de Coura? Se calhar era uma guitarra elétrica o que faltava para o rosto se rasgar, iluminado, num sorriso de orelha a orelha.
    ao menos haverá tema de conversa para muitos domingos
    Abraço
    Ruthia d'O Berço do Mundo

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  28. Insisto em afirmar, o quanto, por aqui, tudo é inusitado e diferente, fato que me encanta. Por aqui, nada é o mesmo.
    Comecei a ler o texto e não conseguia parar (sorrindo).
    O Severino é gente que eu gosto, é gente que pouco se vê.

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