sábado, 27 de março de 2010

A FLOR MURCHA

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O pai partira cedo. E, desde que se recorda de ser gente, habituara-se a ver na mãe um rochedo imenso, imune às intempéries. Aquela caixa-forte, sem aparente palavra passe, levara de vencida todos os escolhos da vida que se lhe foram deparando, construindo uma reputação de determinação e solidez.
Rita foi crescendo à sombra daquela imponência, demasiado assustada para perceber ou questionar. E a mãe, de tão ocupada que estava na sua luta, esquecera-se da matéria frágil de que é constituída uma flor.
Os anos passaram e, à medida que a lenda do rochedo se cimentava, também a fragilidade de Rita se acentuava. Quase irreversivelmente.
Um dia o tempo, inexorável, bateu à porta do rochedo. Este, vencedor de mil batalhas, sabia que o novo obstáculo era intransponível. E começou a fraquejar. Rita, que de tão frágil nunca chegara a entender a grandeza da mãe, escolheu o momento impróprio para amuar, atribuindo-lhe a sua fragilidade. E cultivou a distância.
O rochedo ficou à deriva. E só quando este se desfez em pó é que Rita percebeu que tinha perdido a oportunidade de se tornar uma flor viçosa. E que o caminho para a plenitude seria, a partir daí, muito mais longínquo.
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17 comentários:

  1. Li o texto que publicou em primeira instância. Talvez não tenha compreendido, devo confessar. Não me refiro ao sentido imediato, mas antes àquilo que cabe à sensibilidade intuir. Intrigam-me as pequenas alterações a que procedeu, mas compreendo que o processo de escrita e criação esteja repleto de subtilezas.

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  2. E.A.,
    O acto de escrever requer tempo e disponibilidade, condições de que eu pouco disponho. Por norma, aquilo que aqui vou escrevendo é fruto das circunstâncias: sento-me e, se surgir alguma ideia, vou escrevendo até ela se concretizar. E depois publico. Só que, com este processo, muitas vezes escapa-me um ou outro pormenor. E corrijo ou modifico.
    Foi o que aconteceu com este texto. Depois de o publicar, senti que o final era demasiado fechado. Então acrescentei-lhe uma frase, que funciona como o vislumbre da possibilidade de a Rita um dia poder alcançar a redenção.

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  3. A arrogância e a intolerância afastam e intimidam os mais sensíveis e os mais tímidos. Coartam a possibilidade destes se afirmarem por si próprios e pela sua personalidade. É por isso que todos... todos, sem excepção, temos o dever de não nos atemorizarmos com as bravatas dos rochedos que são brutos. Mais do que isso, temos a obrigação de lutarmos contra os nossos, naturais, medos mas, mais importante, de tentarmos ajudar os distraídos rochedos a reconhecer as suas fragilidade. Sim porque mesmo os rochedos mais consistentes têm sempre fissuras que deixam em aberto as suas fissuras.
    É confortável termos um "porto seguro" na vida. Diria mais, é cómodo e egoísta. Por isso entendo ser necessária uma luta permanente do rochedo e da rosa. A primeira para ser menos rude e insensível, a segunda para ser mais atrevida e voluntarista para que não murche.
    A pancadinha de alerta na primeira e a gotinha de orvalho diária, na segunda fará o equilíbrio que moldará os antagonismos aparentes.
    Para terminar só um pequeno comentário: é preciso uma pitada "cifrada" nos textos que escreves que fazem deles o acepipe "erótico" para os neurónios. Estás de parabéns e continua a sentar-te à secretária e a debitar para o blogue as ideias que te ocorrerem. Enriquece-te a ti. Amealhamos nós que te procuramos compreender.
    Abraço
    Caldeira

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  4. Conheço rochedos desses,corações que, por força das adversidades e do excesso de trabalho,deixam mirrar o coração e fecham os olhos para a luz.Resultado? Prejudicam os seres mais vulneráveis, como é o caso da Rita, flor viçosa cuja indiferença do rochedo impediu de florescer.Mas nunca se deve desistir. O caminho da plenitude não existe, mas é necessário acreditar que a felicidade emocional é tangível.
    Bem sabe como gosto destas pequenashistórias cheias de substância e que obrigam a
    reflectir.

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  5. Caldeira,
    É sempre um prazer ler os teus comentários. Retenho, entre outras, a frase "Por isso entendo ser necessária uma luta permanente do rochedo e da rosa."
    Um abraço.

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  6. Ibel,
    Os seus comentários, como sempre, enriquecem este cantinho.
    Não vou contestar a afirmação "O caminho da plenitude não existe...", pois ela pode ter várias leituras. Mas que, como referência, esse caminho é válido, não tenho a menor dúvida.
    Abraço.

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  7. Amigo, lá estás tu a dar-me cabo do toutiço.
    Acho que entendi, mas não puxes muito por mim ouviste? :)
    Agora a sério, ainda fico às voltas com a última parte. Deixo aqui algumas questões: será que somos nós que determinamos o nosso destino? Ou será que cada um tem o seu destino gravado?
    Um abraço

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  8. Se calhar, o destino está mesmo escrito e gravado num livro qualquer de dificil acesso ao comum dos mortais... mas por força das circunstancias, da vida e das "pessoas" ele é atraiçoado, vezes sem conta... se me permite há algo na sua nota com a qual me identifico... continue... adoro ler !

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  9. Jorge,
    A tua boa disposição é contagiante.
    Quanto às questões que levantas, não é que não queira responder-te, mas isso depende sempre das convicções de cada um. Tens, portanto, que continuar a "dar cabo do toutiço". :)
    Um abraço.

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  10. Ana Paula,
    A sua suposição é interessante.
    Já uma vez aqui escrevi, e reforço, que fico contente por gostar de ler o que escrevo. Espero que continue a acompanhar o que se vai dizendo por este cantinho.

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  11. Este comentário floriu começando pelo fim do teu texto. E até chegar ao título, até ao murchar da flor, foi “crescendo” no alimento da flor e na sombra do rochedo. Nesse caminho, fui sentindo...
    … o peso de cada pétala, mas a leveza do seu aroma;
    … a fragilidade do seu botão, mas a frescura da sua força;
    … a indiferença da sua graça, mas a importância da sua presença;
    … o receio do seu crescer, mas a curiosidade em madurar;
    … a fraqueza da sua seiva, mas o natural beijo nutritivo;
    … a certeza do seu murchar (inevitável), mas a esperança de um novo florir.
    Há por aí, pelos “campos”, muitos “rochedos” e “flores” que conhecem esta história e o seu fim. Alterar esse final, passa por cultivar a proximidade e ter a determinação (?) suficiente para questionar a distância.
    No "rochedo" do Interioridades, nasce uma "flor" sempre que proporcionas o questionar da nossa existência individual e colectiva.

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  12. JB,
    Os percursos de vida são, muitas vezes, feitos de pequenos nadas, para além de símbolos facilmente identificáveis. Tudo requer equilíbrio, incluindo o rochedo e a flor. Quantas e quantas vezes estamos tão preocupados com o nosso umbigo que a oportunidade da harmonia se esvai. Vale-nos, por norma, o aparecimento duma segunda oportunidade. É assim que a maioria das aprendizagens são feitas.

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  13. A minha professora de portugu~es tinha-nos falado deste blog e ontem disse-me que viesse cá e lesse o texto. Ela sabe o motivo.Fez-me bem ler. Vou ter que repensar a minha atitude perante a que me deu a vida. Não vai ser fácil, mas ela não tem culpa da vida ter sido dura com ela e muito menos eu-a maior vítima de tudo.Precismos uma da outra mas não sei como lhe dizer. Se calhar. envio-lhe este texto.Obrigada

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  14. #Anónima,
    Oxalá o texto sirva de alguma coisa. Felicidades para as duas.

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  15. Muito já foi dito a propósito do seu poema, da flor murcha e do murchar da flor. Só quero acrescentar o seguinte: muitas vezes, é na Rosa que se descobre a verdadeira força de existir, apesar da sua delicadeza e fragilidade, aquela força de que ninguém suspeita, subtil, discreta e persistente. E é a Rosa, apesar da sua pequenez e aparente inferioridade, que acaba por demonstrar a sua real grandiosidade ao compreender o Rochedo.
    Pois descobre que é muito melhor murchar que petrificar, e que só existem Rosas graças aos Rochedos e só existem Rochedos porque existem Rosas. No sentido figurado, claro.
    Para concluir, deixo aqui a sugestão dum livrinho de leitura acessível a todos, encantador, duma simplicidade e profundidade tocantes e cuja mensagem sumarenta é comovente e quase mágica:
    O Cavaleiro da Armadura Enferrujada, de Robert Fisher (Editorial Presença).

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  16. Palavras sábias, as suas. Não conheço "O Cavaleiro da Armadura Enferrujada", mas vou tentar ler.
    Obrigado pelo seu contributo. E, já agora, permita-me um tributo às rosas.

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  17. Olá Amigo,
    Reparei que me visitaste com origem neste blog. Não sei se foi por acaso, mas aproveito para deixar-te um abraço.
    Conheço rochedos assim e rosas também.
    Não é fácil ser rochedo, não é fácil ser rosa frágil.
    O que eu penso que é muito fácil para quem não é rochedo nem rosa, dissertar acerca delas, sendo que são muitas as circunstâncias que as "fazem". Muito difícil sermos justos nas nossas conjecturas. São sempre as frágeis rosas a sofrer mais as consequências das agruras da vida, mas nem todas murcham na hora da verdade, ou seja, na hora do rochedo fragilizar...
    Faço minhas as palavras de JB e da última Anónima.
    Vou também tentar encontrar "O Cavaleiro da Armadura Enferrujada".
    E agora, depois do abraço, um enorme beijo.:-)

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