terça-feira, 19 de janeiro de 2010

RESISTÊNCIAS

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Os campos envolventes já não são o que eram na sua mocidade. Nessa altura, contam eles, era um regalo olhar para os terrenos cultivados, cheios de vida e de cor, com ranchos de pessoas a cantarolar enquanto desenterravam o sustento das entranhas da terra bem amanhada.
Rivalizavam na proficuidade das hortas, espelho da sua vaidade, e empenhavam-se na palavra dada, ou não fosse a honra um valor a defender.
Mas os ventos da História mudaram. Os longos braços da globalização também chegaram até aqui, e o desenvolvimento da tecnologia e a liberalização do mercado vieram alterar, significativamente, hábitos e costumes que pareciam imutáveis.
Até há pouco tempo, uma seara era sinal de pão na mesa, de sobrevivência garantida, e contemplá-la fazia bem aos olhos e à alma. Hoje, porém, fica mais barato comprar a farinha, chegada a preços convidativos de um grande país produtor. Para lamento dos poetas, o sugestivo e inspirador ondular das espigas de trigo começou a desaparecer, lentamente, da paisagem. Um terreno por cultivar, infelizmente, há muito que não espanta ninguém. Vão restando as hortas, territórios privados onde cada um vai expurgando os males do mundo.
Mas recusam-se a morrer. Alguns deles criaram, há cerca de dez anos, o Grupo de Cantares de Aldeia de Joanes, onde partilham o gosto pelas tradições da terra, desde os cantares até aos modos de viver cujas origens se perdem nas brumas do tempo. Numa altura em que as novas construções e loteamentos põem em perigo as referências culturais da aldeia, os elementos do grupo teimam em preservá-las e, sempre que se propicia, fazem ouvir as suas vozes na interpretação da Ceifa, da Sacha do Milho ou do S. João... Entretanto, para que a memória não se perca, gravaram um CD com várias canções, todas do tempo da sua meninice.
Colaboram com a escola sempre que são solicitados. Há ano e meio, na Festa do Ciclo do Pão, foram eles os grandes protagonistas. Ceifaram, malharam e cantaram, felizes por poderem passar os seus valores às novas gerações. Vestidos à época, bem apetrechados de foices, manguais e outros artefactos, passaram o tempo a sorrir, apesar do calor sufocante. Reviveram tempos passados, contaram muitas histórias e fizeram soltar umas boas gargalhadas. Gente de boa cepa, é o que é!
Se passar pelos campos de Aldeia de Joanes e tiver tempo para uma pequena pausa, apure bem o ouvido. Nunca se sabe se, por artes da imaginação ou pelo lamento saudoso da terra por arar, ouve o sussurro de uma voz, entoando:
..........Ai se fores ceifar ao campo
..........Ai levai a vossa samarra
..........Ai ceifai muito, ceifai pouco
..........Ai se caio não ceifo nada...

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4 comentários:

  1. "Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades"...
    A mudança, cada vez mais perdida de valores, pela velocidade a que a evolução material ocorre nas sociedades modernas (e de que forma tão injustamente desigual, para seres tão iguais!!!).
    Era bom poder amainar os ventos da História para ...
    ... recuperar o simples olhar da gente que via na terra o seu mais precioso bem;
    ... valorizar o esforço do trabalho que numa entrega mágica gerava tão saboroso alimento (sempre acreditei que havia segredos entre o Homem e a terra por onde passavam as suas mãos);
    ... transmitir tamanhos saberes que a experiência de vida de outros tempos alimentou de forma tão digna;
    ... elogiar os resistentes que ainda têm forças para preservar a sua herança em terrenos, agora, tão arduamente agrestes;
    ... apelar aos poetas para que nas suas palavras relancem as sementes à terra contrariando as fortes correntes do esquecimento!
    Foi o que acabaste de fazer, Agostinho! No teu texto, cultivaste uma nova seara... a "seara da resistência", onde até se consegue ouvir o cantar da terra na voz esperançada da gente que teima em continuar a ceifar!
    Muito bonito, Agostinho!

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  2. Gosto da maneira como respiras as coisas da terra.
    Ela parece que ganha uma alma própria quando falas assim dela.
    Boa bola!

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  3. Eu gosto quer da sua prosa quer da sua poesia.E gosto deste apego a tradições e vontade e incitamento para que permaneçam.
    Gostei do relato em bom português dos setes costados, sempre pincelado com a sua imprescindível veia poética.
    Junto a minha voz à desse grupo e só não ceifo porque ando com uma tendinite que me atormenta.

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  4. Não quero que vás à monda
    Nem à ribeira lavar
    Só quero que me acompanhes
    Ó meu lindo amor
    No dia em que m'eu casar

    No dia em que m'eu casar
    Hás-de ser minha madrinha
    Não quero que vás à monda
    Ó meu lindo amor
    Nem à ribeira sózinha
    (...)


    (Cantares da Terra)

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