terça-feira, 25 de julho de 2023

O NOME DA FLOR

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Margarida Cepêda, Esperança
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No registo dos dias, com mudanças a desafiar o mais ínfimo dos cânones, tornou-se banal o alerta das palavras, como que querendo mobilizar percepções e vontades.
Em vão. A multidão, inquieta, prescindindo de filtrar a realidade que lhe servem a qualquer hora, parece enveredar pelo fruir enquanto é tempo, demitindo-se da exigência da dignidade. E, obedecendo aos sentidos, aplaude os vencedores, revestidos de efémero néon, relegando para debaixo do tapete aquilo que a pode desassossegar. Gesto inútil, a prescindir de carícias, pois o futuro deixou de contar, quem cá ficar que aprenda a tecer loas ao destino, adiando o inevitável recorrendo a um qualquer ludíbrio. E, por entre os intervalos da hipnose, os pesadelos vagueiam à solta.
Entretanto, num qualquer suposto abrigo, Anarte, mãe e avó, imune à destemperança, continuava a debater-se com questões com muito ade: liberdade, igualdade, solidariedade, dignidade, fraternidade…
Judite, filha e mãe, contorcia-se na contínua procura da solução para pagar as contas.
Arinta, filha e neta, procurava besouros nos fraguedos, após passagem pelo terreno poeirento, com a memória alheia aos últimos pingos de chuva. E, surpreendentemente, acaba por descobrir uma flor numa brecha do terreno. Deslumbrada com a forma, a cor e o aroma, sentiu necessidade de a absorver: como lhe chamar?
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domingo, 16 de julho de 2023

VÍNCULO

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O pai, vinculado a uma vida de coerência, apesar dos custos, mais que muitos, avisou-o:
- Podes correr por toda a terra, perceber o respirar de cada habitante, mas, na hora certa, cada ser que te rodeia, por mais insignificante, vai cobrar da tua decisão.
Por que raio se lembrava disso, quando o contrato que tanto almejara se prostrava, sorridente, a seus pés? À boleia disso mesmo, encavalitado num contrato de encher o olho, vislumbrou e fruiu geografias distantes, tentando perceber, embalado na herança paterna, o respirar local. Curiosamente, ou talvez não, ao mergulhar nas novas realidades, sentia, a pouco e pouco, que os problemas de uns eram os problemas dos outros, apesar da distância, não em quilómetros, mas em euros ou em dólares. Todos queriam, no fundo, ser felizes, apesar da diferença, essa sim, quase inultrapassável no espectro cultural.
Quando, numa viagem de circunstância, teve oportunidade de trilhar os Andes, temperada com Titicaca quanto baste, lembrou-se do pai, obrigatoriamente, pois era essa a sua viagem de sonho. E, comovido, não conseguiu evitar um sorriso de satisfação. A partir dali sabia, por mais que invocasse as memórias, que as discrepâncias deste mundo estariam a seu cargo.
Engendrou, com base no engenho diplomado, soluções do agrado de quem decidia. Mas, por entre comemorações, de copo na mão, não conseguia evitar pousar o olhar nos mais simples, que continuavam a bastar-se com dois ou três animais, uma terra saturada e um artesanato ancestral, sonhando, talvez, com a grandiosidade das asas dum qualquer condor duma ordem desaparecida e que, de quando em vez, sobrevoava as escarpas da quase inacessível montanha. E, nessas alturas, sentia que algo lhe escapava, a ele, europeu de gema, apesar de, através da herança paterna, estar desperto para novas equações. Em suma, não se agradava a si próprio.
Por entre caminhos obrigatórios e outros nem tanto, à sorrelfa, foi galgando veredas fora da órbita, procurando comungar dos valores locais. E, o que apreendeu, foi determinante na forma de encarar o mundo. Atrasados, estes indígenas? Que disparate, sentia ele, tínhamos era ainda um longo caminho a percorrer numa mesa vazia, sem pretensões, em que cada um falasse, com humildade, daquilo que mais o inquietava. Caminhar, acima de tudo, de mãos dadas, sentindo que os problemas de uns, apesar da diferença cultural, eram os problemas dos outros.
O caminho não era fácil, pois sabia do riso de escárnio dos mais poderosos, sustentado em ideologias de privilégio, mas estava mais que preparado para ir à luta. Já que mais não fosse, e para além da proximidade, em eterna promessa de sublevação, com os oriundos da terra, na criação das condições para a manifestação do riso natural dos filhos, seus e dos outros, que esperava virem a dar novo rumo a este recanto, aparentemente malfadado, mas com condições únicas para, no final do dia, aconchegar uma visão de dever cumprido. Havia, pois, que deixar-lhes um legado, adornados com cantares de sentido profundo, por mais que doesse.
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sábado, 8 de julho de 2023

PESADELOS NOS INTERVALOS DE OBSERVAÇÃO DAS FLORES

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Margarida Cepêda, Tocando para o abismo
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Eles, os mais velhos, vestiam a pele de sabedores. E discorriam, adoçando as palavras quanto baste, procurando despertar nos mais novos a apetência pela conquista. Mas, na intimidade, desconfiavam.
Eles, os mais novos, vestiam a pele de educados. E, em nome do respeito, evitavam a acidez das palavras para os confrontar com a herança dum mundo em decomposição. Mas, na intimidade, contestavam.
Não houve simbiose na argumentação, longe disso, mas houve, pelo menos, o deglutir duma bela refeição, qual pausa para o encarar dum futuro muito próximo, com a noção de tempo a esvair-se perante as ideias feitas personificadas numa flor: os mais velhos confrontados com a ida para um lar, qual flor murcha, os mais novos com a sobrevivência num mundo sobrelotado, qual flor por inventar.
Se fosse o ensaiar duma peça, o encenador teria o grande desafio, como pano de fundo, de saber retratar a angústia. Com a esperança, de forma muito dissimulada, a tentar espreitar.
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sábado, 24 de junho de 2023

ESCAPADINHA SEM AÇÚCAR

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Margarida Cepêda, Tríptico (Painel 1: A queda; Painel 2: Esquecimento e nostalgia; Painel 3: Ascensão)
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O Bento ajustou a cápsula de café na máquina, apreciando a forma, interrompido pela voz da Lilinha, sempre omnipresente:
- Ainda não tiraste o café?
O Bento, desajustado perante o ajuste, não respondeu verbalmente, limitou-se a carregar no botão da máquina, que deu origem ao processo, e deixou que o ronronar maquinal falasse por ele.
- Açúcar? - inquiriu ele.
- Muito pouco. - respondeu ela.
Já recostada, e enquanto se concentrava no café,  na televisão falava-se, pela enésima vez, da guerra na Ucrânia. Lilinha, recostando-se ainda mais, parecia alheia ao tema. E, de voz dengosa, inquiriu:
- Não há por aí um bombom?
O Bento, contudo, já não a ouvia. A essa hora, medida em segundos sonolentos, ou em minutos mal contados, de tal a pressa, e aproveitando o mergulho no dolce far niente da Lilinha, montara-se na velha bicicleta e seguira pelo caminho velho que ladeava os cedros. E deleitava-se, pedalando, imerso na paisagem e no canto da passarada, sem conservantes nem aditivos.
Quando o cão surgiu na curva, com ar espantado, o Bento pouco podia fazer. E, depois da guinada instintiva, deixou-se ir para o lameiro, enquanto gritava:
- Lilinhaaaaa!!!!
Quando se levantou, meio trôpego, o Bento estava a precisar, nitidamente, de um pouco de açúcar.
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quarta-feira, 14 de junho de 2023

PINGOS DE CHUVA EM CONTRAMÃO

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Fotos de AC
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A chuva, por estes dias, não parou de cair, iludindo a caminhada, mais que provável, para a seca, confirmando, mais uma vez, que a excepção é parte integrante da reg(r)a.
A horta, mais pragmática do que eu, agradece a bênção pluviosa para se desenvolver de forma natural, mas deixando para mim a preocupação com as ervas que, à boleia de tal escorrega, crescem desmesuradamente, nada se importando com um mero aprendiz de hortelão que, por todos os meios, tenta salvaguardar o bem-estar das suas plantas de estimação. Se as ervas agora já se insinuam, a carta de alforria irá chegar, dentro de poucos dias, quando os raios solares retomarem o seu domínio. É então que se começará a conjugar o verbo mondar.
Entretanto, aproveitando a folga da chuva, tento manter-me a par do que se passa pelo mundo, vasculhando jornais e revistas. E confirma-se uma ideia muito arreigada: tanto governantes, como oposição, apenas se preocupam com a detenção do poder, deixando para as calendas a solução dos problemas. E digladiam-se, sem fim, em busca da simpatia de potenciais eleitores. Invocando um famoso título literário, a oeste nada de novo. Felizmente, para aconchego do melhor que há em nós, existe o trabalho incansável de muitas ONG´s, mas o sentido cívico dos governados deixa muito a desejar.
Regresso à horta, aproveitando uma pausa da chuva, e reparo que a sinfonia dos pássaros também está de volta. Lá em cima, em voo planado, algumas aves de rapina povoam os ares, em voo silencioso, sempre atentas às oportunidades. Contrariando a postura das suas vizinhas mais altaneiras, as cegonhas passam num voo mais rectilíneo, com as patas bem distendidas, de modo ergonómico, em consonância com  a cabeça, no outro extremo, com destino bem delineado, sabendo bem ao que vão. As pegas rabilongas, habituais frequentadoras do espaço, afastam-se perante a minha presença. Só os pardais, muito senhores de si, teimam em se manter por perto.
Em pleno distender de sentidos, e em modo tranquilo, acabo por colher o que resta dos alperces, talvez para compota, que este foi um ano de fartura. Mas as cerejeiras, coitadas, de tão tristes, apenas se queixam de tão inesperadas pingas, que as ferem, retirando-lhes o tão esperado tempo de rainhas. São muito sensíveis, estas senhoras.
E assim vamos vivendo, por entre os pingos da chuva, quando os há, com demasiadas pessoas afectadas pelo vírus do consumo. Um dia destes, se chegarem a despertar, é muito provável que já seja tarde de mais. Nesse caso, e por mais que me resguarde, mesmo fazendo a minha parte, o meu pequeno paraíso pouco sentido fará.
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P.S. - Quando me afastava da horta, reparei que uma borboleta fazia duma couve lombarda um porto de abrigo. Voltei atrás, tentei afastá-la, não fosse ela depositar ovos que dariam lugar a lagartas, que mais tarde se alimentariam das couves, mas ela não gostou nada da interrupção, esvoaçando à minha volta com uma velocidade inusitada. Que é isto?, pensei. E lá deixei a criatura em paz, sujeita aos desígnios do seu livre arbítrio. Mas que vou passar a vigiar as couves, lá isso vou! 
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quinta-feira, 25 de maio de 2023

AVIEIRANDO

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Imagem retirada da Net
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Tudo começou na praia da Vieira, que me recebeu, e bem, há uns tempos atrás, onde o cerne do seu povoamento tem como personagens pessoas de labuta dura, em luta titânica com as vagas oceânicas, em busca de peixe para tentar estancar a fome das famílias que lhes sustentavam o pé, qual eterna antecâmara do existencialismo que se satisfazia, tão só, com comida na mesa. Era o solarengo, mas pobre, país que tínhamos, e todos, em mar ou em terra, exceptuando uma centena de famílias que estendiam a sua garra a tudo o que fosse apetecível, tinham que esgadanhar fosse no que fosse para assegurar, minimamente, a sua sobrevivência.
Seguindo as pegadas da história local, agora em busca de reabilitação, os pescadores desta zona, na impossibilidade de exercerem o mester da pesca durante a estação invernosa, perante a necessidade de aconchegar o estômago todos os dias, com família sem qualquer planeamento, que a ignorância de modernos meios era coisa do futuro, deslocavam-se para sul, para a acalmia do Tejo, onde pescavam, essencialmente, o sável, que depois as mulheres vendiam nas aldeias vizinhas. 
Desta faina fluvial, feita nos finais do século XIX até à década de trinta do século XX, os avieiros estabeleceram poiso desde Vila Velha de Ródão até à Póvoa de Santo Adrião. Alves Redol, com espírito observador e inquieto para a época, imortalizou as andanças destes nómadas do rio no livro "Avieiros", que ainda hoje é a grande referência de que dispomos para melhor entendermos esta forma de vida, em que os protagonistas, quase de ventre ao sol e à neblina, navegavam, para cima e para baixo, sujeitos às benesses que o antigo Tagus lhes concedia. 
Ainda restam, nas duas margens, vestígios desta forma de vida. E foi em busca dela que, seguindo  pequenas pistas dos Avieiros, rumámos até Escaroupim, no concelho de Salvaterra de Magos, um lugar onde se procura preservar o rasto que os nómadas fluviais, que faziam do barco casa, por aqui deixaram. E por lá se preservam memórias num museu alegórico, coabitando com antigas casas, tentando resgatar o essencial do impacto destes "intrusos" numa zona que, na origem, não era a sua.
À nossa espera, bem imbuída do espírito do antigo Tagus, estava a equipa do "Rio-a-dentro", documentada, e de que maneira, ao nível histórico e ambiental - até às Memórias Paroquiais, referência obrigatória para qualquer historiador que se preze, foram beber - e que, na manobra dos barcos, vai instruindo os visitantes dos amores e humores do rio. Na deambulação das palavras, sempre bem medidas, a acompanhar, da melhor forma, os rituais do homem do leme, ficámos a saber como se formaram, e susceptíveis de continuar a formar, as ilhas no rio. E assim surgiu a ilha das garças (na foto), que milhares de aves escolheram para nidificar; a ilha dos cavalos, que os quadrúpedes frequentam em busca de erva fresca, atravessando o rio aquando da maré baixa; e a ilha dos amores que, pela sua configuração, suscitou a imaginação dos barqueiros. Entretanto, na margem direita, lá estava a Palhota, outra aldeia avieira - onde Alves Redol chegou a viver, para melhor documentar a sua obra - com habitações palafitas muito bem preservadas e, um pouco mais a montante, deparamos com Valada do Ribatejo, que é normalmente notícia aquando das cheias na estação invernosa.
No Tejo, a sua segunda casa, os avieiros procuravam enganar a fome, com a sua cultura muito própria, mas sempre sujeitos ao olhar desconfiado dos habitantes locais, que nunca entenderam aquela forma de vida. Eram nómadas, diferentes, não se encaixavam na cultura local. E foi necessário decorrer um século para que, finalmente, em terra de cavalos, touros e toureiros, os nómadas do rio tivessem algum esboço de compreensão.
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Não levei máquina fotográfica, porque sim, mas hoje talvez o fizesse. Em suma, não vale a pena tentar entender. :)
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domingo, 23 de abril de 2023

FOREVER YOUNG

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Margarida Cepêda, O rei e o cavalo
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Ele costuma chegar, confiante, distribuindo abraços como se fosse a coisa mais natural do mundo. 
Ainda não fez três anos- faltam três meses - mas apodera-se da casa como se fosse sua, qual governante a quem apenas a boa disposição e a alegria sejam coisas a ter em conta. E, por entre brincadeiras sem fim, não se coíbe de beijar, ou abraçar, quando sente que é caso para isso.
- Avô, anda escondê! - solicita ele, na sua linguagem muito própria.
E eu lá vou, de coração cheio, brincando ao faz de conta com mantas a servir de tenda, com o sorriso dele a comunicar, de tão cúmplice, como se me desse a mão. Os outros, entrando no jogo, vão pintalgando o ar de expectativas, com muito açúcar, soltando a cada passo:
- Onde está o Miguel?
- Está aqui! - grita ele, esfuziante, ao fim dum certo tempo (pouco, mas para ele é muito) como se da novidade mais importante se tratasse.
O Miguel cresce a olhos vistos, rodeado de amor em todos os quadrantes, e ele retribui, retribui sempre, olhos nos olhos, confiante em tudo o que o rodeia.
- Avô, anda, vamos lá fora!
O avô, transbordando duma ternura que tem sempre retorno, até de mais, dá a mão ao novel habitante da tribo, encaminhando-o para os primeiros voos do contacto com a natureza.
- O que é isto?! - exclama ele, perante o cantarolar de um pássaro.
O Miguel, ao contrário do avô, vive num apartamento, na segurança da proximidade dos outros, mas longe dos sons naturais que enriquecem qualquer ser. Pacientemente, com muita ternura à mistura, lá lhe vou explicando o som dos pássaros, o voo de cada um deles, a azáfama das abelhas, o voo silencioso das borboletas...
O Miguel, a pouco e pouco, vai absorvendo uma nova linguagem, que não a sua, mas que tende a interiorizar. E, por mais informação que se lhe faculte, uma coisa me orgulha, profundamente: ele continua a abraçar, incondicionalmente, tudo aquilo que passe no seu filtro de gostar, tudo aquilo que o faz sentir feliz.
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quarta-feira, 19 de abril de 2023

QUER OUTRO PASTEL?

Imagem retirada da net
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O meu pequeno paraíso, ladeado por excelsas damas, a Gardunha e a Estrela - tão diferentes e, em simultâneo, tão irrigadoras do meu olhar - por mais inspirador, não basta para me apaziguar por completo. E, por uns dias, rumei para o litoral atlântico, sem artefactos tecnológicos, qual necessidade catártica na tentativa de abraçar o mar, o grande caldeirão químico onde tudo começou. 
Praia deserta, como convinha, toda a atenção para a reconhecida grandiosidade do oceano. E ele, qual eterno matusalém, parecia divertir-se a mostrar diversas facetas, com o conluio dos elementos. Enquanto arremetia contra o indefeso areal, desenhando nuvens efémeras de espuma, afastava qualquer curioso, por mais agasalhado, com a cumplicidade da neblina e do vento. Quando o intrometido se afastava, escorraçado, com uns pingos de chuva a completar o leque, o sol, inesperadamente, dava entrada em cena, primeiro timidamente, mas depressa dardejando com algum ímpeto, a ponto de o invasor sentir necessidade de despir o casaco e, quase sem se dar conta, começar a sorrir. Mas era sol de pouca dura, que o mar tem via privilegiada para invocar os elementos. E o casaco lá servia novamente de aconchego, até o visitante percorrer o que faltava para um bar com sala envidraçada, com vista privilegiada para o gigante em constante movimento, mas ao abrigo dos seus maus humores.
Ainda não eram nove horas. Na sala viam-se algumas pessoas, que pouco ou nada conversavam, pois a presença do mar, apesar da protecção da vidraça, continuava omnipresente. Escolhi o melhor lugar disponível, tendo em conta a vista, e sentei-me, deixando-me absorver, lentamente, pela paisagem marítima, com o pensamento a embalar numa deriva  de considerações, sem leme e sem âncora.
- Deseja alguma coisa?
Emergi da quase inconsciência. À minha frente estava um homem na casa dos sessenta, com alvos retoques na barba rala, devidamente aparada. Recuperei a presença de espírito e, num meio sorriso, limitei-me a dizer:
- Um café e um pastel de nata.
O homem regressou, serviu-me e, por uns instantes, deixou-se ficar a observar o mar. Aproveitei para meter conversa:
- Para quem gosta de ver o mar, e sentir o seu aroma, hoje está um dia ventoso.
Olhou-me e, após uma breve pausa, deve ter sentido que o novel interlocutor merecia alguma confiança. E ousou, num ditame quase cúmplice:
- Sabe, meu amigo, passei a vida atrás do vento, mas nunca o consegui apanhar. Mas, com tantas andanças, umas contra e outras de feição, acabei por encontrar o equilíbrio, conseguindo desenhar alguma paz. 
Olhou-me, serenamente, medindo a minha reacção. Depois, parecendo satisfeito com o que via, adoptou uma postura mais profissional, com um leve sorriso a denunciá-lo, e inquiriu:
- Quer outro pastel?
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domingo, 9 de abril de 2023

BREVETA PRIMAVERIL

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AC, Flor de cerejeira
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Quando as andorinhas voltavam, ela ia, bem cedo, pelo caminho das cerejeiras, procurando absorver tudo como se fosse a primeira vez. O tempo parava, para a contemplar, enquanto piscava o olho às abelhas. Depois, qual eterna menina, imitava o gorjear dos pintassilgos, insinuava o voo das borboletas, acariciava esta ou aquela flor...
Quando regressava, de alma plena, ainda trazia, no brilho dos olhos, os vestígios da alquimia primaveril.
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terça-feira, 4 de abril de 2023

DESÍGNIO

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Margarida Cepêda, Ela, o violoncelo e as vagas
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Ela já era, mas não sabia.
Inquieta com os outros, fruto da sua opção de vida, procurava, o melhor que sabia, pejada de dúvidas, saber das nuvens que lhes cobriam os horizontes, do seu respirar sem convicção, dos parcos momentos em que, qual milagre da vida, a rara espontaneidade se concretizava num sorriso, por mais ténue. E, sempre atenta, registava o pormenor, depois da consulta, procurando dar cor aos nomes que, lentamente, parecia que se iam sumindo na paisagem, cada vez mais desertificada.
Ela era um anjo, mas não sabia. Contudo, os velhos que lhe adornavam a consulta, mal habituados à dignidade do trato e do olhar, sabiam-no desde a primeira vez.
Ela é como é e, perante o olhar melado dos velhos, e o respeito dos outros, começa a perceber, lobrigando perante as dificuldades de saber ser quando pouco ou nada se tem. Só ainda não entendeu, por mais que lhe digam, por que é que, em todo o lado, não é sempre assim, com a dignidade a não conseguir ganhar lastro.
Apesar do ruidoso silêncio dos hostis gestos dos conformados, prossegue na sua convicção, qual  percurso sem fim à vista. E persiste. Ela respira o equilíbrio do mundo em modo de vida e não se imagina de outra forma, pois cresceu a pensar que a proximidade e o calor de um gesto podem fazer toda a diferença. 
Ela é assim, a nossa doutora, qual joana sem pestana a tremelicar, mas de olho sempre a brilhar. Apesar de lamentar os falsos ais e uis de quem decide, ela continua a remar, contra ventos e marés, alimentando a alma com o que a preenche, qual miríade dum futuro por desenhar.
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